quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Dores = ferramentas

Ele é Deus

 

 

Rose Nascimento

Deus trabalha diferente do homem, Ele sabe agir
Tem nas mãos o controle de tudo aqui
Ele vê muito além do que o homem vê
Ele fez prisioneiro ser governador
Fez menino pequeno ser um vencedor
Nas batalhas em que grandes guerreiros estavam com medo.

Ele fez moça pobre sentar-se num trono real
Pra salvar o seu povo de um homem mau
Ele chamou um leigo pra ser pregador
Escolheu a cidade menor que havia
E uma simples jovem chamada Maria
Pra nascer o Salvador do mundo numa estrebaria.

Deus levanta do monturo o necessitado
E assenta num lugar seguro e elevado
Deus escolhe o humilde, mas abate quem é exaltado
Capacita o pequeno e confunde o grande
Faz o fraco ficar forte, cheio de poder
Deus é Deus! Ele não vê o homem como a gente vê.

E quando o crente esta debaixo da unção de Deus
Ele ora e o milagre vai acontecer
Deus opera na simplicidade com muito poder
Deus trabalha diferente, usa como quer
Só precisa de um coração que tenha fé
Quem se humilha na Sua presença Ele coloca de pé.

Deus trabalha diferente do homem, Ele sabe agir.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Vista cansada



Otto Lara Resende

Acho que foi o Hemingway quem disse que olhava cada coisa à sua volta como se a visse pela última vez. Pela última ou pela primeira vez? Pela primeira vez foi outro escritor quem disse. Essa idéia de olhar pela última vez tem algo de deprimente. Olhar de despedida, de quem não crê que a vida continua, não admira que o Hemingway tenha acabado como acabou.
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta é só isto: um certo modo de ver. O diabo é que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. Vê não-vendo. Experimente ver pela primeira vez o que você vê todo dia, sem ver. Parece fácil, mas não é. O que nos cerca, o que nos é familiar, já não desperta curiosidade. O campo visual da nossa rotina é como um vazio.
Você sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se alguém lhe perguntar o que é que você vê no seu caminho, você não sabe. De tanto ver, você não vê. Sei de um profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prédio do seu escritório. Lá estava sempre, pontualíssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e às vezes lhe passava um recado ou uma correspondência. Um dia o porteiro cometeu a descortesia de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? Não fazia a mínima idéia. Em 32 anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser também que ninguém desse por sua ausência. O hábito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas há sempre o que ver. Gente, coisas, bichos. E vemos? Não, não vemos.
Uma criança vê o que o adulto não vê. Tem olhos atentos e limpos para o espetáculo do mundo. O poeta é capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ninguém vê. Há pai que nunca viu o próprio filho. Marido que nunca viu a própria mulher, isso existe às pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.

Texto publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 23 de fevereiro de 1992.