sexta-feira, 16 de setembro de 2016

MEIO POETA

 

No dia em que Poliana e André voltaram da lua-de-mel, Poliana chegou na casa dos pais e se trancou no quarto com a mãe. Precisava contar uma coisa e não queria que o pai ouvisse.

- O André é poeta, mamãe.

A mãe levou as mãos à boca.
- Minha Virgem Santíssima!
Depois perguntou:
- Como você descobriu?

- Na primeira noite. A lua estava cheia. Ele fez umas frases sobre a luz da lua no meu corpo.

- Mas você tem certeza que era poesia? Rimava?

- Não rimava, mas era poesia. Ele mesmo disse, mamãe! Eu perguntei "O que é isso?" e ele respondeu

 "Eu sou meio poeta".                                       

- Bem que seu pai desconfiou...

- Você acha que devemos contar ao papai?

- É claro. E agora.

O pai disse "Eu sabia" e determinou que chamassem André para se explicar. Poliana disse que André ficara de buscá-la ali depois do trabalho. Os três esperaram a chegada de André. A mãe, temendo algum excesso do pai, tentou amenizar a situação:                                         

- Ele disse que é só "meio" poeta...                           

 O pai não disse nada. Quando soou a campainha da porta, mandou que a filha fosse para o quarto. André cumprimentou os sogros efusivamente - era a primeira vez que os via depois da festa do casamento -  mas logo percebeu a frieza deles.

- O que foi? - perguntou.

- Você não nos contou que era poeta - disse o pai.

- Mas eu não...

- Não adianta negar. A Poliana nos contou. Você pensou que ela não nos contaria?

- Mas foi só um...

- Sei. Um poeminha. É assim que começa. Um versinho hoje, um versinho amanhã. Não demora você estará fazendo poemas épicos, odes a qualquer coisa, diariamente. Já vi acontecer. Acabará abandonando o emprego, roubando a

mesada da minha filha, para sustentar o hábito.

- Mas eu...

- Você vai dizer que pode parar quando quiser. É o que todos dizem.

- Meu filho - interveio a mãe, aflita, - você não se dá conta do mal que a poesia pode fazer?  Há quanto tempo você...

- Não interessa - interrompeu o pai - O que ele fez antes não nos interessa. Mas agora está casado. Tem responsabilidades, tem que trabalhar para manter a família. Está num ramo competitivo, não pode facilitar.

Eu sei, eu sei, a poesia é tentadora. Eu mesmo, na mocidade, fiz meus sonetos...

- Eurico!(a mãe)

- Nunca lhe contei isto, Marta, mas fiz. Felizmente tive um pai que me orientou e parei a tempo. A Poliana foi criada sem qualquer poesia. Qualquer sugestão de métrica, nós reprimíamos. E sempre a alertamos contra os poetas.

- Será - sugeriu a mãe - que não existe um programa de reabilitação? Alguém com quem você possa se aconselhar e ...
Mais uma vez o pai a interrompeu.
- A decisão tem que ser sua, André. E tem que ser agora. Você compreende que não podemos deixar a Poliana sair desta casa, onde sempre teve toda a segurança, para viver com um poeta. Não nos dias de hoje. Faça a sua escolha; a Poliana, uma família, uma vida normal ... ou a poesia.

André jurou que abandonaria a poesia para sempre, Poliana foi chamada, os dois foram para o apartamento novo, Poliana um pouco desconfiada, e André ouvindo a advertência, na saída: "Olhe lá, hein?" 

Hoje, sempre que fala com Poliana pelo telefone, a mãe pergunta:
- E o André?

- Está bem, mamãe.

- Nunca mais ...

- Nunca.

Às vezes, quando a família está toda reunida, André diz umas coisas que provocam troca de olhares entre os outros e a suspeita de uma recaída. Depois a Poliana assegura que aquilo não é poesia, é só o jeito dele mesmo. Mas seu Eurico e dona Marta vivem preocupados com a filha. Nas noites de lua cheia, então, dona Marta nem consegue dormir direito.


Luís Fernando Veríssimo
Revista de Domingo, Jornal do Brasil, 1993.

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